O Cavaleiro de Santa Catarina II – Na Batalha de Varna

PRIMEIRA PARTE
CAPÍTULO SEGUNDO

Ainda o pó, revolto, turvava a limpidez do ar, quando Huniade deu ordem para o ataque.
Prepararam-no os besteiros que inundam o campo adverso com um aluvião de setas, arremesso em que húngaros e polacos são particularmente destros. Os turcos respondem logo; e a seguir dá-se o assalto à arma branca, confundindo-se os dois adversários na refrega.

Carnificina horrível em que, morto Karadja, rei de Anatólia, as tropas otomanas, abatidas, entraram em viva debandada. O pânico apoderou-se, irresistivelmente, dos filhos de Mafoma.

Em volta do sultão ficara, apenas, a sua guarda de janízaros, além de alguns beis velhos, mais fanáticos. Os outros, achavam-se ocultos ou dispersos.

Parecia que ainda desta vez o crescente seria vencido pela Cruz. Mas Amurate, pálido, embora, estava firme e confiante. De olhos fitos no Tratado, rogava a Allah, com fervor, o seu justiceiro auxílio.

A cavalaria polónio-húngara, composta de atléticos guerreiros cobertos de armaduras que soltam, das espaldas, fortes e estranhas asas, esperava insofrido o momento da sua intervenção.

Os cavalos relincham inquietos.
Súbito, ressoa um brado: – «Por São Jorge!…» É a voz do rei. Estêvão de Bathor, num gesto alto, levanta o estandarte.
No mesmo instante, Ladislau cercado dos seus príncipes de ferro como ele, ambiciosos de glória – rompe a galope, de começo, curto, preparando a arremetida heróica: um desses épicos lances em que se celebrizaram, sempre, os esquadrões polacos.

Amurate, sereno, mas com o olhar chispante de ódio, ordena à sua guarda – Isolai-o dos companheiros. Ele virá sobre nós, como um javali ferido. Afastai-vos e, num relâmpago, envolvei-o em vosso círculo. i Matai-o – rugiu com voz cava -e praticareis uma santa acção, perante Deus e o seu profeta!» (4) E um velho bei remata, comungando na sanha do sultão
– Que o castigo do traidor vá, se a tem, até a sua descendência !. . . Declina o sol.

O rei vai à frente, agora, em toda a beleza da sua figura de moço e de guerreiro.
A distância encurta, e acelera-se o galope. A um gesto seu, a bandeira de São Jorge dá o sinal, e a carga é desferida…

Os cavalos somem-se, roçando o solo arroxado à luz sanguínea do poente. Só se vê, na investida impetuosa, a faixa ondulante daqueles monstros de aço que projectam as asas, hirtas, no cinzento – rubro do horizonte.

As polidas armaduras, chispando e refulgindo, isolam-nos do chão pulverizado em rolos de nuvens pardacentas. É uma legião, mítica, de dragões, que corta o ar na direcção do campo turco.

A certo espaço do fosso, Ladislau dobra-se mais na sela, acicata o seu corcel alado que transpõe trincheira e sebes, e, encristando a lança, arremessa-se num voo sobre a tenda do sultão.

Outros e outros cavaleiros se lhe seguem… E a violenta erupção polaca não permite aos turcos o projectado isolamento.

Contudo, a ordem de Amurate foi cumprida.
Um janízaro conhecido, entre os seus, por Akteché – homem de pele e cabelos claros -abaixando-se dum salto, fere fundo, a machado, uma perna do cavalo do rei. O animal baqueia, e Ladislau é lançado longe, entre turcos, húngaros e polacos mortos e feridos na peleja. Akteché, atento, seguiu-o com a vista como a fixar o sítio onde ficara; mas pouco se moveu do seu lugar.

Caíam em torno dele, quase sobre ele, corpos de cristãos e de soldados turcos, bem que, naquele ponto, a maior parte fossem da nobreza polaca que seguira Ladislau na vertiginosa carga.

0 janízaro, delgado e ágil, defende-se destes choques; e, aproveitando um instante demais calma na confusão sangrenta, aproxima-se do cadáver dum cavaleiro da Cruz que jaz próximo do corcel real, bate-lhe com a acha, de prancha, o rosto já contuso, e despoja-o, rápido, da armadura, como para tornar mais leve o fardo.

Nisto, chega-se-lhe um velho janízaro, de nome Khodja-Khazer, (5) que, bruscamente, o sacode pelos ombros
– Que estás a fariscar aí, sangue de perro, filho de cristãos?
– Filho de cristãos, como todos da nossa guarda, (6) menos tu e poucos mais… Fui eu que o abati – e apontava para o cadáver já desnudo -ferindo-lhe o cavalo; acabo de matá-lo, conforme a ordem de Amurate, e quero levar a cabeça do traidor aos pés de nosso amo.
– Não a levarás, que tomo conta dela. E, dum golpe, separou do tronco a cabeça do cavaleiro polaco, segurando-a pelos cabelos longos de tom loiro-cendrado.
-Toma e cala-te! – volve Khodja-Khazer, enrugando a testa sob cujas arcadas luzem os olhos negros, levemente oblíquos, de genuíno oriental. E atirou-lhe uma bolsa com dinheiro.
– Não falarás! Sabes bem que te conheço… e que se soltasses uma palavra sobre o caso, essa seria a última – acrescentou, fitando-o com desdém.
Afastado da sua tenda destruída pela invasão cristã, o grão-turco que vira cair o rei, não pôde seguir tais incidentes passados em instantes.
Akteché apanhou a bolsa, contraindo os lábios num sorriso equívoco. E, apenas se viu longe das vistas de Khazer, deitou –se entre a massa jacente dos cavalos e dos corpos de turcos e cristãos.

O velho janizaro meteu uma lança na base da cabeça gotejante ainda e correu a levá-la à presença de Amurate.
O sultão mandou fixar a haste com o macabro troféu ao lado da outra em que se via o Tratado de Paz traído pelo rei polaco. E, olhando-o com devoto júbilo, agradecia a vingança do seu Deus e o castigo do próprio Deus cristão pela execrável perfídia. (7)

Ladislau III, aquele jovem belo, generoso e heróico que era o ídolo do seu povo e o galvanizador dos seus exércitos, desaparecera da luta, caindo pouco além da tenda de Amurate.

O desânimo logo se apoderou das tropas húngaras, não sendo já possível ordená-las. Os polacos ainda feriram alguns combates singulares; mas depressa se desmoralizaram por igual.

A batalha de Varna tristemente célebre na história da Polónia, terminara ali com a trágica derrota dos exércitos cristãos.

Huniade, que voltava da perseguição do inimigo, após a primeira fase da luta que lhe fora favorável, nada vira da catástrofe.

Informado de que, do lado turco, se expunha uma face cristã, tida, pelo adversário, como a do seu rei e amigo, o caudilho fez prodígios de coragem para arrancá-la da posse de Amurate. Mas a noite já caia; e, desesperado da sorte da batalha, abandonou o campo, acompanhado dos valáquios (8).

Lá para trás, através das sombras desta noite de São Martinho, de 1444, um observador, mesmo atento e suspeitoso, mal poderia divisar dois vultos que, rastejando, se escoavam peias dobras do terreno, nessa hora, enevoado.

No dia seguinte, os turcos encontraram, entre os que caíram sob a fúria de seus golpes, os prelados de Eger e de Grosswardein. O Cardial Cesarini, que combatera com fé e intrepidez junto a Estêvão de Bathor, lá estava com este ainda na mesma união da morte.
Entre os valiosíssimos despojos, descobriram-se os arquivos da Coroa da Polónia nas equipagens de Ladislau III – mas nada foi achado da sua fortuna pessoal. Amurate enviou «a cabeça do vencido» conservada em mel, (9) ao governador de Broussa, ao tempo, capital da Turquia. Lavada nas águas do Niloufer, pelo próprio enviado do sultão, o troféu foi passeado pelas ruas, na extremidade dum chuço, entre vaias e doestos da multidão fanática.

Polacos e húngaros recusavam-se a crer na morte do soberano. Uns, diziam que, feito prisioneiro, seguira para Constantinopla; outros, que o rei errava pela Itália, e, ainda outros, que passara, a ocultas, para a Espanha. (10)

O próprio Huniade que se aproximara do humano despojo exposto no campo turco, tentando subtraí-lo ao inimigo, não reconheceu nele a cabeça do monarca. O bastardo de Segismundo, por seu prestígio e pelo sangue, podia bem, nesta hora, aspirar à coroa húngara visto que Casimiro, considerando o irmão vivo, se recusava a aceitá-la; afirmava, porém, não crer na morte de Ladislau. (11) Testemunho insuspeito, que, por todos os motivos, foi considerado irrefutável…

Morto ou ausente, sempre lhe sucedeu Casimiro IV na coroa da Polónia, mas depois dum interregno de três anos – alegando-se como razão da escolha a circunstância de, com ela, nenhuma mudança interna se operar quando um dia Ladislau voltasse… (12)

Tal era, ao tempo, e muito depois ainda, (13) o estado de espírito dos polacos, acerca do desaparecimento do seu rei.

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(4) Obra e tomo citados – pág. 119 (2.ª col.)
(5) Este nome é, de facto, na história da Polónia, o do janízaro que, na Batalha de Varna, decepou a cabeça de pois ostentada por Amurate II, no seu campo, como sendo a de Lasdislau III. Obra e tomo referidos, pág. 119 (2.ª col.). Desta citação se conclui que esse não foi o mesmo janízaro que abateu o cavalo em que carregava o infausto rei polaco. Designei, no texto, este outro soldado por Akteché.
(6) Os janízaros constituíam, como se sabe, uma espécie de guarda pretoriana do sultão. A-fim-desta poder ser empregada contra o povo, em caso de necessidade, era composta, quase exclusivamente, por filhos de cristãos, roubados a suas famílias e convertidos ao islamismo, nem sempre com todo o êxito…(7) e (8) Obra e tomo citados – pág. 119 (2.ª col.)(9) Obra e tomo citados – pág. 120 (1 ° col.)(10), (11) e (12)-Obra e tomo citados – pág. 120 (2.ª col.)

(13) Em 1465, vinte e um anos depois da Batalha de Varna, numerosos boémios e polacos que viajavam pela Europa, entre eles, dois, muito instruídos (Alexandre Sasek e Gabriel Tetzel) afirmaram, nas suas narrativas de viagem, ter encontrado em Cantalapiedra (Espanha), o rei Ladislau III, da Polónia, feito eremita. Á frente desta embaixada, dumas quarenta figuras, vinha Léo, Barão de Rozmital, cunhado do rei da Boémia. Estes viajantes chegaram a Portugal, entrando por Freixo de-Espada à-Cinta. A tal afirmação – que só mostra como perdurou a descrença sôbre a morte de Ladislau, para muito além da Batalha de Varna – se referem, entre outros, os autores da obra «LA POLOGNE» que vimos citando (pág. 126 –1.ª col.) e, mais minuciosamente, o ilustre Académico Sr. Coronel de Artilharia Henrique de Campos Ferreira Lima, em seu erudito trabalho «Relações entre Portugal e a Tchecoeslováquia». A história diz-nos que, entre os polacos, a fé na sobrevivência do seu rei, que nenhum realmente vira morrer na célebre batalha, se conservou ainda muitíssimo depois de 1465.